Por Dra. Lih Vitória, Biomédica
Por muito tempo, o uso da cannabis foi cercado de estigmas, medos e preconceitos. No entanto, com o avanço da ciência, temos visto uma transformação significativa na forma como essa planta é entendida e, mais importante, utilizada. A cannabis medicinal tem se destacado como uma ferramenta importante no tratamento de diversos transtornos neurobiológicos, oferecendo novas opções para pacientes que muitas vezes esgotaram as alternativas convencionais. Os transtornos neurológicos afetam milhões de pessoas em todo o mundo, e a medicina está constantemente buscando alternativas eficazes para tratar essas condições complexas. A cannabis medicinal, que até recentemente era alvo de preconceito e desinformação, está ganhando destaque como uma opção terapêutica promissora. Diversos estudos apontam que os canabinoides presentes na planta interagem diretamente com o Sistema Endocanabinoide (SEC), um regulador fundamental da dor, humor e neuroproteção.
Como biomédica e geneticista, venho acompanhando de perto as pesquisas sobre o Sistema Endocanabinoide (SEC), um sistema biológico fundamental que regula funções como dor, humor, memória e até o apetite. Ao interagir com os receptores canabinoides, a cannabis pode influenciar positivamente esses processos, trazendo alívio e melhor qualidade de vida para muitas pessoas. Vamos explorar alguns dos principais usos da cannabis em transtornos neurobiológicos.
O SEC é um regulador chave do nosso corpo, e sua modulação tem mostrado resultados promissores em várias condições neurológicas. A ativação dos receptores CB1 e CB2 por meio dos canabinoides promove efeitos terapêuticos, como o alívio da dor e a redução da inflamação, temas críticos para pessoas que lidam com condições neurobiológicas crônicas. A cannabis medicinal pode ser uma aliada no tratamento de transtornos neurológicos, oferecendo uma nova esperança para quem convive com essas doenças.
Modulação da Dor
O Sistema Endocanabinoide (SEC) desempenha um papel importante na percepção da dor. Ao ativar os receptores canabinoides, a cannabis pode ajudar a aliviar dores crônicas, como as que acometem pacientes com esclerose múltipla e fibromialgia. Esses canabinoides interagem com os receptores CB1 e CB2, modulando a resposta à dor de forma natural, o que evita a necessidade de analgésicos sintéticos e seus efeitos colaterais devastadores.
Regulação do Humor e Ansiedade
Estudos indicam que o SEC também influencia diretamente o humor e a ansiedade. A ativação dos receptores CB1 no cérebro estimula a produção de neurotransmissores como a serotonina, melhorando o bem-estar emocional. Isso é especialmente relevante para pacientes com transtornos como depressão e ansiedade crônica, condições frequentemente presentes em pessoas com doenças neurobiológicas.
Neuroproteção
A neuroproteção é uma área de grande importância, principalmente em doenças neurodegenerativas como Alzheimer e Parkinson. Canabinoides possuem propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias que ajudam a reduzir a inflamação e o estresse oxidativo no cérebro. Esses processos são fundamentais para retardar a progressão dessas doenças, proporcionando maior qualidade de vida aos pacientes.
Epilepsia
A relação entre o SEC e o controle de crises epilépticas é um dos campos mais promissores. O uso de canabinoides tem mostrado reduzir a frequência e a gravidade das crises em muitos pacientes, inclusive naqueles com epilepsia refratária, que não respondem bem aos medicamentos convencionais. Diversos estudos reforçam que a cannabis pode ser uma opção segura e eficaz para o controle dessas crises.
Autismo e Transtornos Neurobiológicos (TDAH/sintomas do TOD)
Pesquisas estão avançando no uso da cannabis medicinal para o tratamento de sintomas associados ao autismo, como comportamentos repetitivos, dificuldades de comunicação, insônia, ansiedade e agressividade. Um estudo publicado na Progress in Neuro-Psychopharmacology and Biological Psychiatry em 2018, revisou dados pré-clínicos e clínicos sobre o uso de cannabis em jovens com Transtorno do Espectro Autista (TEA), mostrando melhora na interação social e redução de sintomas como o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Outro estudo, publicado na Nature, acompanhou 188 pacientes com TEA tratados com cannabis medicinal e relatou que 28 deles tiveram melhorias significativas. Esses estudos sugerem que a cannabis medicinal é uma alternativa segura e bem tolerada para alívio dos sintomas associados ao autismo e a outros transtornos neurobiológicos, como TEA e TDAH.
O que temos visto é apenas o começo. A ciência está apenas arranhando a superfície do potencial terapêutico da cannabis em transtornos neurobiológicos. No entanto, para que essas descobertas beneficiem mais pacientes, é fundamental que o preconceito e a desinformação sejam enfrentados. Precisamos de mais pesquisas e mais acesso à cannabis medicinal, especialmente em países onde seu uso ainda é “altamente restrito” ou até criminalizado, como no Brasil.
Como biomédica, vejo com otimismo o futuro da cannabis medicinal, especialmente quando falamos de transtornos neurobiológicos que afetam milhões de pessoas ao redor do mundo. A cannabis é uma ferramenta valiosa, capaz de melhorar vidas e transformar o tratamento de doenças crônicas e neurodegenerativas. É hora de deixarmos de lado o estigma e abraçarmos a ciência. O caminho está claro: a proibição carece de sustentação científica. A cannabis é uma opção terapêutica segura, eficaz e que, com o suporte adequado, beneficia milhares de pessoas que ainda estão sofrendo sem acesso a tratamentos adequados.
Referências:
- POLEG, Shani et al. Cannabidiol as a suggested candidate for treatment of autism spectrum disorder. Progress in Neuro-Psychopharmacology and Biological Psychiatry, v. 89, p. 90-96, 2019.
 - CRIPPA, José Alexandre S. et al. Neural basis of anxiolytic effects of cannabidiol (CBD) in generalized social anxiety disorder: a preliminary report. Journal of Psychopharmacology, v. 25, n. 1, p. 121-130, 2011.
 - CAMPOS, A.C., MOREIRA, F.A., GOMES, F.V., DEL BEL, E.A., GUIMARÃES, F.S. Multiple mechanisms involved in the large-spectrum therapeutic potential of cannabidiol in psychiatric disorders. Philos Trans R Soc Lond B Biol Sci, 2012 Dec 5;367(1607):3364-78. doi: 10.1098/rstb.2011.0389. PMID: 23108553; PMCID: PMC3481531.
 - BAR-LEV SCHLEIDER, Lihi et al. Real life experience of medical cannabis treatment in autism: analysis of safety and efficacy. Scientific Reports, v. 9, n. 1, p. 1-7, 2019.