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Você conhece os canabinoides menores?

A Cannabis sativa L. é uma planta fascinante e multifacetada, ancestral e cheia de surpresas químicas. Domesticada por diversas culturas humanas ao longo de milênios, tornou-se uma farmácia vegetal ambulante, carregando consigo centenas de compostos com potenciais efeitos terapêuticos. E entre esses compostos, o grupo mais conhecido é o dos fitocanabinoides, ou seja são substâncias bioativas exclusivas dessa planta, capazes de interagir com nosso sistema endocanabinoide.

Até o momento, mais de 120 fitocanabinoides já foram identificados, além de mais de 190 outros compostos não canabinoides, como flavonoides, terpenos e fenóis, todos relevantes para a atividade farmacológica da planta. E, apesar de o THC (tetrahidrocanabinol) e o CBD (canabidiol) reinarem em popularidade, há muito mais por trás dos bastidores dessa química natural.

Quimiotipos da Cannabis: o perfil químico como identidade terapêutica

Durante muito tempo, Cannabis foi separada em “maconha” e “cannabis medicinal”, uma dicotomia mais ideológica do que científica. Hoje, com o avanço da quimiotaxonomia — ciência que classifica as plantas com base em seus perfis químicos, entende-se que é o conjunto de compostos presentes na planta que determina seu uso, e não meramente o nome ou a variedade.

A Cannabis sativa pode ser classificada em cinco quimiotipos, de acordo com a predominância de certos fitocanabinoides:

  • Quimiotipo I: alto teor de Δ⁹-THC (psicoativo), chamado de tipo droga.
  • Quimiotipo II: equilíbrio entre THC e CBD, com proporção próxima a 1:1.
  • Quimiotipo III: predominância de CBD com THC abaixo de 0,6% — o cânhamo industrial.
  • Quimiotipo IV: plantas ricas em CBG (canabigerol).
  • Quimiotipo V: plantas com quase nenhum canabinoide detectável.

O efeito comitiva: a sinfonia química da cannabis

O foco terapêutico da cannabis moderna não está mais restrito a um ou dois compostos. Cada vez mais se reconhece o papel do chamado efeito comitiva (entourage effect), uma sinergia entre canabinoides, terpenos e flavonoides, que potencializa os efeitos terapêuticos do fitocomplexo como um todo. Assim como uma orquestra não é feita apenas pelo violino solo, o efeito terapêutico da cannabis também depende da harmonia de suas várias moléculas.

Canabinoides menores: o que são e por que importam?

Os canabinoides menores são aqueles encontrados em menores concentrações nas plantas de cannabis. Mesmo em quantidades discretas, despertam grande interesse científico por seus efeitos farmacológicos específicos. Entre eles, destacam-se:

  • CBG (Canabigerol)
  • CBGA (Ácido canabigerólico)
  • CBDA (Ácido canabidiólico)
  • THCA (Ácido tetrahidrocanabinólico)
  • CBNA (Ácido canabinólico)
  • CBDV (Canabidivarina)
  • THCV (Tetrahidrocanabivarina)
  • CBGV (Canabigerovarina)
  • CBCV (Canabicromevarina)
  • CBN (Canabinol)
  • Δ⁸-THC (Tetrahidrocanabinol isomérico)

Apesar de pouco conhecidos fora dos círculos científicos, esses compostos possuem uma variedade de ações biológicas que vão da atividade neuroprotetora ao potencial antiviral, passando por efeitos antiepilépticos, anti-inflamatórios e moduladores do apetite.

A química dos canabinoides: a origem bioquímica da diversidade

Do ponto de vista químico, os canabinoides pertencem à classe dos terpenofenóis ou meroterpenoides, derivados de duas vias metabólicas principais:

  • Via dos isoprenóides → dá origem ao precursor geranil pirofosfato (GPP)
  • Via dos policetídeos → forma os ácidos fenólicos, como ácido olivetólico ou ácido divarínico

A combinação desses precursores, catalisada por enzimas específicas, resulta em compostos com estereoquímicas distintas — ou seja, formas moleculares diferentes, que determinam como e com que intensidade essas moléculas interagem com nossos receptores biológicos (Figura 1).

Figura 1: Diagrama esquemático da biossíntese de canabinoides, incluindo as vias precursoras de policetídeos e isoprenoides. As vias precursoras são fundidas por uma preniltransferase aromática localizada no plastídio, com ácidos alquilresorcinólicos e intermediários de difosfato de geranila formando canabinoides com um resíduo isoprenil linear. Fonte: Adaptado. HURGOBIN, 2021

Canabinoides ácidos: a forma natural da planta

Você sabia que o THC e o CBD, na verdade, não existem na planta viva em suas formas ativas? No vegetal in natura, os canabinoides estão em sua forma ácida: THCA, CBDA, CBGA. Esses compostos só se convertem em suas formas neutras e biologicamente ativas quando expostos ao calor — processo conhecido como descarboxilação.

Por exemplo:

  • CBDA → CBD
  • THCA → THC
  • CBGA → CBG

A descarboxilação pode ocorrer durante a secagem, aquecimento para extração ou combustão da planta. Essa transformação libera gás carbônico (CO₂) e altera profundamente a atividade farmacológica dos compostos (Figura 2).

Figura 2:  A biossíntese dos ácidos fitocanabinoides na Cannabis começa com um precursor comum chamado ácido olivetólico, que então passa por uma série de transformações enzimáticas. Quando expostos ao calor, os ácidos fitocanabinoides são prontamente descarboxilados em suas formas neutras. Fonte: CAYMAN CHEMICAL (2025).

Estabilidade e oxidação: o surgimento do CBN e do Δ⁸-THC

Quando mal armazenados, os canabinoides sofrem reações de oxidação. O Δ⁹-THC, por exemplo, degrada-se com o tempo e pode se converter em CBN (canabinol) — um canabinoide com efeito sedativo e menos psicoativo. Além disso, o Δ⁸-THC, um isômero mais estável, também pode ser formado nesse processo, com propriedades semelhantes, mas menos potentes, que o Δ⁹.

Essas reações reforçam a importância da estabilidade química dos produtos derivados de cannabis e da tecnologia de armazenamento para preservar seus efeitos terapêuticos (Figura 3).

Figura 2: O oxigênio atmosférico oxida  Δ9-THC em CBN e Δ8-THC, bem como em outros intermediários não mostrados acima. Fonte: CAYMAN CHEMICAL (2025).

Canabinoides varínicos: pequenos ajustes, grandes efeitos

Os canabinoides varínicos, como THCV, CBDV e CBCV, são derivados do ácido divarínico — com uma cauda molecular mais curta do que a dos canabinoides tradicionais. Essa pequena diferença estrutural tem grande impacto nos alvos terapêuticos.

  • CBDV (Canabidivarina): semelhante ao CBD, mas com ação diferenciada sobre canais TRP (TRPV1–TRPV4, TRPA1, TRPM8) e receptores como GPR55 e GPR6.
    • Potencial em epilepsia refratária, transtornos do espectro autista, síndrome de Rett e neuroinflamação.
  • THCV (Tetrahidrocanabivarina): atua como antagonista parcial do receptor CB1, sendo estudada em obesidade, diabetes tipo 2, ansiedade e Parkinson.

Esses compostos têm despertado interesse especial por não apresentarem efeitos psicoativos importantes, mas demonstrarem grande potencial terapêutico (figura1).

CBGA e CBDA: potencial antiviral contra o SARS-CoV-2

Em 2022, uma pesquisa liderada por Richard van Breemen chamou a atenção do mundo: os canabinoides ácidos CBGA e CBDA mostraram potencial para inibir a entrada do vírus SARS-CoV-2 nas células humanas. Agindo como ligantes da proteína Spike, esses compostos impediram que o vírus se ligasse aos receptores celulares ACE2 (Figura 4).

Figura 4: CBDA como bloqueador do vírus  Sars-CoV 2 na entrada de células. Fonte: VAN BREEMEN,  2022.

Os resultados, obtidos em laboratório, apontam para um possível uso profilático ou complementar no combate a infecções virais, embora ainda exijam muitos estudos clínicos para validação terapêutica segura.

Uma nova era para a ciência da cannabis

O universo dos canabinoides menores está apenas começando a ser desbravado. A cada novo estudo, descobrimos propriedades farmacológicas promissoras que podem revolucionar o tratamento de doenças neurológicas, autoimunes, infecciosas e inflamatórias.

Valorizar a diversidade química da Cannabis não é apenas um ato científico, mas também um movimento de justiça terapêutica. Compreender, pesquisar e regulamentar com base na ciência é essencial para garantir que esses compostos cheguem com qualidade e segurança à população.

Afinal, o que hoje chamamos de «canabinoides menores» pode, amanhã, ocupar um papel de protagonismo na medicina do futuro.

Referências

  • HURGOBIN, Bhavna; TAMIRU‐OLI, Muluneh; WELLING, Matthew T.; et al. Recent advances in Cannabis sativa genomics research. New Phytologist, v. 230, n. 1, p. 73–89, 2021. 
  • SALAMONE, Stefano; WALTL, Lorenz; POMPIGNAN, Anna; et al. Phytochemical Characterization of Cannabis sativa L. Chemotype V Reveals Three New Dihydrophenanthrenoids That Favorably Reprogram Lipid Mediator Biosynthesis in Macrophages. Plants, v. 11, n. 16, 2022. 
  • Degradants Formed During Phytocannabinoid Processing. Cayman. Disponível em: <https://www.caymanchem.com/news/degradants-formed-during-phytocannabinoid-processing>. 
  • VAN BREEMEN, Richard B.; MUCHIRI, Ruth N.; BATES, Timothy A.; et al. Cannabinoids Block Cellular Entry of SARS-CoV-2 and the Emerging Variants. Journal of Natural Products, v. 85, n. 1, p. 176–184, 2022. 

Por Lorrany teixeira, cientista química e coordenadora científica da ComitivaBio Medicina Integrativa

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