Por Dra. Lih Vitória, Biomédica
A cannabis tem se mostrado uma planta com um enorme potencial terapêutico, sendo cada vez mais reconhecida por suas aplicações no tratamento de diversas condições, como dor crônica, epilepsia, ansiedade e doenças neurodegenerativas, como Alzheimer e Parkinson. A crescente evolução da pesquisa científica internacional evidencia o impacto positivo dos compostos da planta, os mais conhecidos: o tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD), na gestão de sintomas de múltiplas condições médicas. Contudo, apesar de o Brasil ser um líder mundial em publicações científicas sobre o uso medicinal da cannabis, o país ainda enfrenta obstáculos consideráveis que limitam o acesso a esses tratamentos e o desenvolvimento de melhores alvos terapêuticos.
A principal barreira reside em uma estrutura regulatória proibicionista. O modelo proibicionista ainda prevalece, impedindo o avanço de políticas públicas que possam permitir um mercado seguro e acessível para os pacientes. Embora a ciência continue a avançar e a demonstrar os múltiplos benefícios terapêuticos da cannabis, é urgente que as políticas públicas brasileiras sejam atualizadas para integrar as descobertas científicas e garantir o acesso adequado a tratamentos eficazes e seguros para a população.
A ciência já prova, há milhares de anos, o uso terapêutico da cannabis para diversas condições de saúde, como dor crônica e aguda, ansiedade, Alzheimer, Parkinson, fibromialgia, TEA, depressão, entre mais de 200 patologias, como mostra o site Cannakeys.com
A Cannabis e o Sistema Nervoso
A cannabis tem atraído a atenção de pesquisadores, principalmente pelo seu impacto no tratamento de condições neurológicas. A planta possui mais de 100 compostos canabinoides, sendo o THC e o CBD os mais estudados. Esses compostos interagem com o sistema endocanabinoide (SEC), uma rede de receptores que regulam funções fisiológicas como a dor, o humor e a memória. A seguir, exploramos como esses compostos podem ser aplicados no tratamento de transtornos neurológicos e na modulação do sistema nervoso central.
Canabinoides e Sistema Nervoso Central
Os canabinoides atuam principalmente sobre dois tipos de receptores no sistema nervoso central: CB1 e CB2. O receptor CB1, localizado em áreas do cérebro associadas à memória, emoção e controle motor, é amplamente influenciado pelo THC, que pode afetar o humor, a memória e a coordenação motora. Por outro lado, os receptores CB2 estão predominantemente envolvidos na regulação da inflamação e na neuroproteção, o que é essencial para doenças neurodegenerativas, como Alzheimer e Parkinson.
Aplicações Terapêuticas da Cannabis em Transtornos Neurológicos
- Transtornos Convulsivos e Epilepsia: O CBD demonstrou eficácia significativa como anticonvulsivante, sendo aprovado para o tratamento de formas raras de epilepsia, como a síndrome de Dravet e a síndrome de Lennox-Gastaut. O CBD ajuda a estabilizar a atividade elétrica no cérebro, reduzindo a frequência das crises.
 
- Doenças Neurodegenerativas: A cannabis tem mostrado benefícios no tratamento de doenças como Parkinson e Alzheimer, devido às suas propriedades antioxidantes e neuroprotetoras. O THC, ao interagir com os receptores CB1 e CB2, ajuda a reduzir a neuroinflamação, proteger as células cerebrais e melhorar a função motora em pacientes com Parkinson.
 
- Transtornos de Ansiedade e Depressão: O CBD tem se mostrado promissor no tratamento de transtornos de ansiedade e depressão. Ele atua sobre os receptores 5-HT1A, envolvidos no controle do humor, além de regular a atividade do SEC, equilibrando neurotransmissores como a serotonina.
 
Neuromodulação e Dependências
A neuromodulação é um processo fundamental na regulação da atividade neuronal, afetando a liberação de neurotransmissores como a dopamina, associada ao prazer e à recompensa. O SEC desempenha um papel central nesse processo. Estudos recentes indicam que a cannabis pode ser útil no tratamento de dependências químicas, aliviando sintomas de abstinência e diminuindo o desejo por substâncias como álcool e nicotina.
A Necessidade de Atualização das Políticas Públicas: Justiça Social e Reparação Histórica
Apesar do avanço científico, o Brasil ainda enfrenta uma grande resistência à implementação de políticas públicas que permitam o acesso a tratamentos com cannabis. O país precisa superar a herança de um modelo proibicionista, profundamente influenciado por questões históricas e raciais, que criminalizam a planta sem considerar seus usos terapêuticos.
A desatualização das políticas públicas impede a criação de um mercado acessível e seguro para os pacientes, além de estigmatizar o uso terapêutico da cannabis. Neste cenário, as associações de pacientes desempenham um papel fundamental. Elas atuam como defensoras da justiça social, ao lutar por uma regulamentação que leve em consideração tanto os avanços científicos quanto as necessidades reais da população.
A Conscientização e Participação da Sociedade
É imprescindível que a sociedade brasileira, bem como os profissionais da saúde e da academia, se mobilizem para promover um debate sério e informado sobre o uso medicinal da cannabis. A integração das universidades públicas e privadas, juntamente com as associações de pacientes, é essencial para avançarmos em uma regulamentação justa que respeite os direitos dos cidadãos e a liberdade de escolha no tratamento de doenças.
Além disso, a conscientização da população sobre os benefícios da cannabis e a importância de uma regulamentação transparente e científica pode abrir caminhos para a construção de uma política pública mais justa e inclusiva. Este é um momento importante para a sociedade brasileira se unir e exigir políticas que tratem a cannabis de forma científica, humana e respeitosa, contribuindo para a reparação histórica das injustiças causadas pela criminalização da planta e promovendo um futuro mais justo e saudável para todos.
A cannabis tem potencial para transformar a saúde pública no Brasil, e é nossa responsabilidade garantir que a ciência e a justiça social caminhem juntas para tornar esse potencial uma realidade para todos os cidadãos.
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